segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Quando o mestre aparece, a gente sabe!


São onze horas e quarenta e cinco minutos. Reservei este horário, antes do almoço para escrever... Uma hora e quinze minutos e vamos lá!
Desde que estou em Uberaba somente tive oportunidade de vivenciar um workshop em seis anos. Foi um longo período de abstinência focado em outros assuntos e no desenvolvimento de outros trabalhos. Mas, finalmente aconteceu, de novo! A experiência cumulativa de muitas oficinas com muitos mestres me proporcionou uma condição gratificante: reconheço um mestre à primeira vista, exatamente quando ele me olha bem direto nos olhos. É algo como o lastro do seu espírito aflorando, emitindo um alerta, sem falar, nem sequer pensar nisso. De imediato,  minha mente se apressa: presta atenção que ele tem algo a lhe oferecer que você só pode receber através do canal que acessou!
Não conheço nada mais impressionante do que isto! Quando o mestre aparece, a gente sabe! E ele vem com a sua bagagem de experiência, de conhecimento e de sabedoria da vida. Um pacote completo: algo que nos lega e fica para sempre.... Algo que nos proporciona que assume a configuração de um degrau ou de uma porta....O mestre costuma nos impulsionar para frente e para cima, com alegria e confiança, e como quê nos entregar a chave daquele espaço ainda não visitado que descobrimos no de repente da sua inusitada presença.
Então, foi assim mesmo: o Maestro Roberto Rodrigues abriu uma roda de conversa em torno dele, como se não tivesse outra coisa mais importante pra fazer além de ouvir sonhos, dificuldades, trajetos, expectativas que viemos trazendo pelo caminho da vida até nos encontrarmos com ele. Depois se levantou e, como quem brincava de dar aula com as crianças que ainda somos, foi verificar o que conseguíamos fazer, o que entendíamos por música, como nos valíamos dos nossos recursos físicos, mentais e emocionais para explicitarmos e compartilharmos o nosso canto. Era de se ver como ele fez aflorar as dificuldades de todos com poucos exercícios! Não corrigiu ninguém diretamente, não expôs nenhum participante ao ridículo de sua incompetência, não humilhou a impossibilidade técnica ou simplesmente pessoal de nenhum de nós, não ofendeu a suscetibilidade dos mais frágeis ou quiçá dos mais orgulhosos se os houvesse. Apenas foi dando sugestões muito precisas que certamente, cada um compreendeu perfeitamente porque ele bem sabia direcionar o trabalho de todos os presentes: nos observava e ouvia com absoluta nitidez. Recebi vários alertas que eram meus, comentei com os colegas, não perceberam nada ...Era tudo tão sutil, refinado, elegante... Um astral bem humorado, divertidíssimo, mas muito, muito e muito controlado e preciso. Um grau de seriedade, de domínio teórico e técnico aliado à generosidade dimensionada sobre uma compreensão filosófica da função da arte na vida do ser humano, seja ele o músico que executa, seja o espectador que ouve...
Aff! Este é o vigésimo quinto minuto do meu texto: preciso trazer à baila o ponto crucial do trabalho, meu tempo está se esgotando! Pois bem, logo de início, o Maestro disse a que veio, atuando, se relacionando, definindo sua abordagem. E foi bem claro nisso: não verbalizou em nenhum momento, porque não precisava anunciar que era um mestre e trazia algo significativo, com sua marca pessoal, construído ao longo da vida. Apenas agiu, abrindo uma perspectiva na consciência de quem estava pronto. Ah, mas isso é fundamental! Se o discípulo não está pronto, ele simplesmente não aprende nada, não percebe nada, não muda nada, não arreda pé de suas convicções. Acha que “já sabe”! E vira as costas, dizendo: “ah! achei muito interessante, mas, não foi novidade pra mim”! Esse é o “achólogo” típico e pelo que senti, entre nós não tinha nenhum “achólogo” de plantão, felizmente, porque caso contrário ele não deixaria o trabalho prosseguir, claro.
Falei em “abertura de perspectiva na consciência” e não esclareci  como compreendo isso. Bem, os mestres - proponho - são aqueles que conseguem mover a nossa consciência e nos conduzir suavemente por um caminho de propriocepção mais profunda, mais intensa. Essa era a articulação singular do trabalho em pauta. Canto em que o corpo se presentifica, a sensação dos elementos físicos envolvidos no ato de cantar é aguçada, ampliada. O corpo como fundamento, alicerce, instrumento, não apenas o aparelho fonador, mas todo o ser envolvido na emissão sonora, musicalmente envolvido! Sentimento, emoção, filosofia: ética e estética do canto, foi bem isso!
E era muito comovente, era extraordinário vê-lo relacionando-se com os participantes todos com um profundo empenho, com um extremo respeito humano, com uma paciência de Jó!!! Havia profissionais experientes, professores e também gente como eu, que gosta de cantar, mas não tem preparo técnico e teórico para executar peças complexas. Creio que no meu caso, nem mesmo as mais simples!
Mas o intuito do mestre não é conduzir abruptamente o discípulo a patamares elevados, não é expor suas graves impossibilidades ou deficiências perante o grupo, é, como já disse, abrir a perspectiva de melhoria, de aprimoramento com clareza, despertando no aprendiz, o profundo desejo de tentar e conseguir...
Essa é mais uma característica que considero extraordinária nos mestres que encontrei: são capazes de despertar, por empatia, através do exemplo muito generoso, o que chamo de “profundo querer” do aluno.  É possível alguém chegar a algum lugar sem querer ir? Precisamos almejar e almejar muito intensamente para suportarmos as exigências do aprendizado, para vencermos os obstáculos do caminho, para alcançarmos a realização de nosso ideal. Ou queremos profundamente ou não queremos e não nos realizamos no processo que não elegemos como prioridade para nós.
O mestre não destrói sonhos, não frustra expectativas, não grita: “NÃO, não é assim!!!” Isso ele comentou brevemente,e em palavras minhas, trazendo sua visão, reproduzo sua fala: "porque dizer algo desagradável a alguém? Essa pessoa vai, às vezes, passar noites em claro, sofrendo por causa do que eu disse. Por que gerar um sofrimento como esse? É inútil! No início, - ele comentou – eu fazia isso com os alunos, mas, depois fui aprendendo e procuro não agir de forma que os choque ou os ofenda"...
Aí, veio um comentário muito interessante, o Maestro disse: não existe nada perfeito. Não atingimos a perfeição. Executamos uma peça de uma forma. Em seguida, se a iniciarmos de novo, será diferente. Daí, compreendi que a ideia não é alcançar a perfeição, mas, fazer música, viver a música, sentir o prazer da música, centrar foco na função da música...E reitero, de minha parte, de muito bom grado, compartilhar boa música!
Vários exemplos ele citou, e um deles, ressaltou a questão do maestro e do compositor de uma determinada obra. No cartaz, no material de divulgação, vê-se o nome do maestro responsável pela regência da peça musical num espetáculo, em letras gigantes. O nome do compositor aparece discretamente em letras menores, caracterizando o desvio de função. A obra pode ser qualquer uma, e parece que ninguém vai ao concerto para ouvir Brahms, mas para ver o regente tal fazer sua performance extraordinária. Nesta esteira, o solista também vai para o pedestal e a música se converte em atividade restringida aos “eleitos”, aos “talentosos” com um “dom” inato.
Neste aspecto, além de ter vivido a experiência de reger um dos nove grupos do Coralusp, de lecionar e de desenvolver inúmeros projetos singulares e inovadores, Roberto Rodrigues dedica-se atualmente à regência do Coral Itaú Unibanco. Essa atividade lhe proporcionou o contato com pessoas que não têm formação específica na área de música, nem sequer leem partituras, mas o resultado obtido por ele é extraordinário!
Pudemos constatar o quanto Roberto Rodrigues, em sua generosidade, construiu em termos de metodologia para desenvolver e aprimorar o trabalho vocal de seus coralistas. Foi muito eficaz com a gente! Não chegamos a um patamar de excelência em tempo mínimo, mas conseguimos compreender, sentir e executar prazerosamente, três peças belíssimas, uma delas da Renascença e bastante complexa: Lirum bililirum de Rossino Mantovano.
Coral Itaú Unibanco em Itanhaem - Maestro Roberto Rodrigues à direita
Nos dois minutos que ainda me restam, acrescento, ou melhor, ressalto a questão da generosidade. O que faz o artista, em nosso entender, é a generosidade. Ele estuda e aprende e se aprimora para oferecer o fruto do seu trabalho a outrem. Quanto mais generoso, mais se aprimora e maior prazer tem em oferecer este fruto ao público. Comentei, na roda de avaliação final, que o Maestro propôs, que é a generosidade que faz com que o artista se prepare e agradeci pela extrema generosidade do mestre que nos proporcionou tão agradável e proveitosa oficina. Ao término, entretanto, ele se aproximou de mim e, em tom baixo e suave disse: “vocês é que foram generosos, sem a generosidade de todos, eu não conseguiria desenvolver o meu trabalho”.
A riqueza toda da experiência vivida não coube no tempo que reservei para relatar o fato e refletir sobre ele. Vou retomar o assunto! Por enquanto, ficamos por aqui, meditando e trabalhando...
Forte abraço a todos que participaram, e os que não vieram, não percam o próximo encontro que haverá de acontecer! Meus agradecimentos aos colegas e principalmente à Profa. Marly Gonçalves da Costa, que nos deu este verdadeiro presente do céu, articulando a vinda do Maestro Roberto Rodrigues a Uberaba*!

Rita De Blasiis

Maestro Roberto Rodrigues
No Coralusp, Roberto Rodrigues também promoveu intensa atividade didática como professor de Percepção, Harmonia, Arranjo, Regência, Técnicas de Ensaio para Monitores, História da Música e Apreciação Musical, assim como apresenta palestras sobre Iniciação Musical e Audições Comentadas de grandes obras corais sinfônicas. Atualmente desenvolve atividades no Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Leia mais

E para matar a saudade... ouçam!
Lirum bililirum



Profa. Marly Gonçalves da Costa


*O workshop teve o apoio da Fundação Cultural de Uberaba e aconteceu no Conservatório Estadual de Música Renato Frateschi, onde a Profa. Marly Gonçalves da Costa leciona flauta.