São onze horas e quarenta e cinco
minutos. Reservei este horário, antes do almoço para escrever... Uma hora e
quinze minutos e vamos lá!
Desde
que estou em Uberaba somente tive oportunidade de vivenciar um workshop em seis
anos. Foi um longo período de abstinência focado em outros assuntos e no
desenvolvimento de outros trabalhos. Mas, finalmente aconteceu, de novo! A
experiência cumulativa de muitas oficinas com muitos mestres me proporcionou
uma condição gratificante: reconheço um mestre à primeira vista, exatamente quando
ele me olha bem direto nos olhos. É algo como o lastro do seu espírito
aflorando, emitindo um alerta, sem falar, nem sequer pensar nisso. De imediato, minha mente se apressa: presta atenção que ele tem
algo a lhe oferecer que você só pode receber através do canal que acessou!
Não conheço nada mais
impressionante do que isto! Quando o mestre aparece, a gente sabe! E ele vem
com a sua bagagem de experiência, de conhecimento e de sabedoria da vida. Um
pacote completo: algo que nos lega e fica para sempre.... Algo que nos proporciona que assume a configuração de um degrau ou de uma porta....O mestre costuma nos
impulsionar para frente e para cima, com alegria e confiança, e como quê nos
entregar a chave daquele espaço ainda não visitado que descobrimos no de repente
da sua inusitada presença.
Então,
foi assim mesmo: o Maestro Roberto Rodrigues abriu uma roda de conversa em
torno dele, como se não tivesse outra coisa mais importante pra fazer além de
ouvir sonhos, dificuldades, trajetos, expectativas que viemos trazendo pelo
caminho da vida até nos encontrarmos com ele. Depois se levantou e, como quem
brincava de dar aula com as crianças que ainda somos, foi verificar o que
conseguíamos fazer, o que entendíamos por música, como nos valíamos dos nossos
recursos físicos, mentais e emocionais para explicitarmos e compartilharmos o nosso canto. Era de
se ver como ele fez aflorar as dificuldades de todos com poucos exercícios! Não
corrigiu ninguém diretamente, não expôs nenhum participante ao ridículo de sua
incompetência, não humilhou a impossibilidade técnica ou simplesmente pessoal
de nenhum de nós, não ofendeu a suscetibilidade dos mais frágeis ou quiçá dos mais
orgulhosos se os houvesse. Apenas foi dando sugestões muito precisas que
certamente, cada um compreendeu perfeitamente porque ele bem sabia direcionar o
trabalho de todos os presentes: nos observava e ouvia com absoluta nitidez. Recebi
vários alertas que eram meus, comentei com os colegas, não perceberam nada ...Era
tudo tão sutil, refinado, elegante... Um astral bem humorado, divertidíssimo,
mas muito, muito e muito controlado e preciso. Um grau de seriedade, de domínio
teórico e técnico aliado à generosidade dimensionada sobre uma compreensão
filosófica da função da arte na vida do ser humano, seja ele o músico que
executa, seja o espectador que ouve...
Aff!
Este é o vigésimo quinto minuto do meu texto: preciso trazer à baila o ponto
crucial do trabalho, meu tempo está se esgotando! Pois bem, logo de início, o
Maestro disse a que veio, atuando, se relacionando, definindo sua abordagem. E
foi bem claro nisso: não verbalizou em nenhum momento, porque não precisava
anunciar que era um mestre e trazia algo significativo, com sua marca pessoal,
construído ao longo da vida. Apenas agiu, abrindo uma perspectiva na
consciência de quem estava pronto. Ah, mas isso é fundamental! Se o discípulo
não está pronto, ele simplesmente não aprende nada, não percebe nada, não muda
nada, não arreda pé de suas convicções. Acha que “já sabe”! E vira as costas,
dizendo: “ah! achei muito interessante, mas, não foi novidade pra mim”! Esse é
o “achólogo” típico e pelo que senti, entre nós não tinha nenhum “achólogo” de
plantão, felizmente, porque caso contrário ele não deixaria o trabalho
prosseguir, claro.
Falei
em “abertura de perspectiva na consciência” e não esclareci como compreendo isso. Bem, os mestres - proponho - são
aqueles que conseguem mover a nossa consciência e nos conduzir suavemente por
um caminho de propriocepção mais profunda, mais intensa. Essa era a articulação singular do
trabalho em pauta. Canto em que o corpo se presentifica, a sensação dos elementos
físicos envolvidos no ato de cantar é aguçada, ampliada. O corpo como
fundamento, alicerce, instrumento, não apenas o aparelho fonador, mas todo o
ser envolvido na emissão sonora, musicalmente envolvido! Sentimento, emoção,
filosofia: ética e estética do canto, foi bem isso!
E era
muito comovente, era extraordinário vê-lo relacionando-se com os participantes todos com um profundo empenho, com um extremo respeito humano, com uma paciência de
Jó!!! Havia profissionais experientes, professores e também gente como eu, que
gosta de cantar, mas não tem preparo técnico e teórico para executar peças
complexas. Creio que no meu caso, nem mesmo as mais simples!
Mas
o intuito do mestre não é conduzir abruptamente o discípulo a patamares
elevados, não é expor suas graves impossibilidades ou deficiências perante o
grupo, é, como já disse, abrir a perspectiva de melhoria, de aprimoramento com
clareza, despertando no aprendiz, o profundo desejo de tentar e conseguir...
Essa
é mais uma característica que considero extraordinária nos mestres que
encontrei: são capazes de despertar, por empatia, através do exemplo muito
generoso, o que chamo de “profundo querer” do aluno. É possível alguém chegar a algum lugar sem
querer ir? Precisamos almejar e almejar muito intensamente para suportarmos as
exigências do aprendizado, para vencermos os obstáculos do caminho, para
alcançarmos a realização de nosso ideal. Ou queremos profundamente ou não
queremos e não nos realizamos no processo que não elegemos como prioridade para
nós.
O
mestre não destrói sonhos, não frustra expectativas, não grita: “NÃO, não é
assim!!!” Isso ele comentou brevemente,e em palavras minhas, trazendo sua visão,
reproduzo sua fala: "porque dizer algo desagradável a alguém? Essa pessoa
vai, às vezes, passar noites em claro, sofrendo por causa do que eu disse. Por que
gerar um sofrimento como esse? É inútil! No início, - ele comentou – eu fazia
isso com os alunos, mas, depois fui aprendendo e procuro não agir de forma que
os choque ou os ofenda"...
Aí,
veio um comentário muito interessante, o Maestro disse: não existe nada
perfeito. Não atingimos a perfeição. Executamos uma peça de uma forma. Em
seguida, se a iniciarmos de novo, será diferente. Daí, compreendi que a ideia
não é alcançar a perfeição, mas, fazer música, viver a música, sentir o prazer
da música, centrar foco na função da música...E reitero, de minha parte, de
muito bom grado, compartilhar boa música!
Vários
exemplos ele citou, e um deles, ressaltou a questão do maestro e do compositor
de uma determinada obra. No cartaz, no material de divulgação, vê-se o nome do
maestro responsável pela regência da peça musical num espetáculo, em letras
gigantes. O nome do compositor aparece discretamente em letras menores, caracterizando
o desvio de função. A obra pode ser qualquer uma, e parece que ninguém vai ao
concerto para ouvir Brahms, mas para ver o regente tal fazer sua performance
extraordinária. Nesta esteira, o solista também vai para o pedestal e a música
se converte em atividade restringida aos “eleitos”, aos “talentosos” com um
“dom” inato.
Neste
aspecto, além de ter vivido a experiência de reger um dos nove grupos do Coralusp, de lecionar e de desenvolver inúmeros projetos singulares e inovadores, Roberto Rodrigues dedica-se atualmente à
regência do Coral Itaú Unibanco. Essa atividade lhe proporcionou o contato com pessoas
que não têm formação específica na área de música, nem sequer leem partituras,
mas o resultado obtido por ele é extraordinário!
Pudemos
constatar o quanto Roberto Rodrigues, em sua generosidade, construiu em termos
de metodologia para desenvolver e aprimorar o trabalho vocal de seus coralistas.
Foi muito eficaz com a gente! Não chegamos a um patamar de excelência em tempo mínimo,
mas conseguimos compreender, sentir e executar prazerosamente, três peças
belíssimas, uma delas da Renascença e bastante complexa: Lirum bililirum de Rossino Mantovano.
Coral Itaú Unibanco em Itanhaem - Maestro Roberto Rodrigues à direita |
Nos dois minutos que ainda me
restam, acrescento, ou melhor, ressalto a questão da generosidade. O que faz o
artista, em nosso entender, é a generosidade. Ele estuda e aprende e se
aprimora para oferecer o fruto do seu trabalho a outrem. Quanto mais generoso,
mais se aprimora e maior prazer tem em oferecer este fruto ao público. Comentei,
na roda de avaliação final, que o Maestro propôs, que é a generosidade que faz
com que o artista se prepare e agradeci pela extrema generosidade do mestre que
nos proporcionou tão agradável e proveitosa oficina. Ao término, entretanto, ele se
aproximou de mim e, em tom baixo e suave disse: “vocês é que foram generosos,
sem a generosidade de todos, eu não conseguiria desenvolver o meu trabalho”.
A
riqueza toda da experiência vivida não coube no tempo que reservei para relatar o
fato e refletir sobre ele. Vou retomar o assunto! Por enquanto, ficamos por aqui,
meditando e trabalhando...
Forte abraço a todos que
participaram, e os que não vieram, não percam o próximo encontro que haverá de
acontecer! Meus agradecimentos aos colegas e principalmente à Profa. Marly
Gonçalves da Costa, que nos deu este verdadeiro presente do céu, articulando a
vinda do Maestro Roberto Rodrigues a Uberaba*!
Rita De Blasiis
Maestro Roberto Rodrigues |
No
Coralusp, Roberto Rodrigues também promoveu intensa atividade didática como professor de
Percepção, Harmonia, Arranjo, Regência, Técnicas de Ensaio para Monitores,
História da Música e Apreciação Musical, assim como apresenta palestras sobre
Iniciação Musical e Audições Comentadas de grandes obras corais sinfônicas.
Atualmente desenvolve atividades no Departamento de Música da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Leia mais
E para matar a saudade... ouçam!
Lirum bililirum
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