domingo, 9 de agosto de 2015

Impressões de "Um Amor de Renúncia"



Palacete do Século XVII situado na
Île de la Cité, no coração de Paris, similar à descrição de
 Emmanuel, autor espiritual da obra Renúncia, psicografada
por Francisco Cândido Xavier. 
A oportunidade de assistir o espetáculo que resultou do recorte feito pelo dramaturgo Alberto Centurião sobre a obra Renúncia do Espírito Emmanuel, psicografia de Francisco Cândido Xavier, foi preciosa e gratificante. A síntese do romance redundou em um texto para cena com apenas três personagens, o que nos pareceu, à primeira vista, um desafio e tanto para a diretora Lucienne Cunha, algo que se evidenciou, entretanto, ao vermos o trabalho finalizado, uma questão muito bem resolvida.  A concepção cênica do espetáculo nos ofereceu, sem dúvida, momentos de enlevo e de reflexão muito singulares.
Nas entrelinhas do texto, mediante o qual Emmanuel inicia a sua obra, fazendo a apresentação da protagonista, há pistas sobre os pendores para as artes em geral, do Espírito Alcíone. A percepção disso, presumimos, permitiu um insight muito interessante em relação à concepção cênica do espetáculo. Nessa esteira, a tradução da singularidade artística da protagonista para a linguagem teatral foi apresentada nos primeiros momentos do espetáculo de forma bastante especial.  Alcíone dançando, compondo a cena mediante o desenvolvimento de movimentos corporais leves e sutis, transmitiu, na exata medida, a ideia de um ser angelical, guiado por sentimentos nobres. A abertura do espetáculo tem uma composição densa e poética, e lida com a realidade do plano espiritual de maneira original, valendo-se de artifícios muito sugestivos.
Nesse aspecto, ressaltamos o que diz Leonard Pronko, em sua obra Teatro: Leste & Oeste. Esse autor e pesquisador faz uma observação importante sobre os recursos cênicos empregados pelo teatro na China; esclarece ele que o fazer teatral nesse país considera importante elaborar, mediante a produção de um espetáculo, um “apelo à faculdade criativa do espectador”.  Ou seja, os elementos fornecidos a esse, devem constituir-se em referência para que o público complemente, deduza, imagine, a partir do que está posto em cena, articulando em sua própria mente o contexto imponderável do espetáculo...
Um Amor de Renúncia revelou a adoção de uma linha de ação dramática apoiada na narrativa oral cênica. O trabalho foi habilmente conduzido pela direção com o adequado concurso dos atores Flavio Wongalak, Thalita Drodowsk e Valdir Ramos, no sentido de proporcionar aos espectadores, de forma bastante pontual, cada qual com sua introspecção, a oportunidade de construir e de fruir, junto com o elenco, o recorte poético da trágica relação afetiva do casal.
A trilha musical do espetáculo, então, considerados esses aspectos do trabalho, surgiu como um contraponto sutil. A história se passa no século XVII, mas, os grandes amores eternos, as histórias trágicas protagonizadas por apaixonados que professam convicções inalienáveis e revelam personalidades marcantes, não têm tempo fixo, data prévia, época adequada para acontecerem. O tempo presente é o seu momento. Os conflitos, os processos de aprendizagem mediante a difícil convivência, em meio a todas as nuances que compõem uma existência de sacrifícios e, sobretudo, as relações amorosas densas, não pertencem a nenhum período exclusivo da história da humanidade. Basta um casal verdadeiramente apaixonado impossibilitado de realizar o seu sonho de amor para se desenvolver uma trama que eletrizará qualquer plateia. Os insucessos, os sofrimentos e agruras da vida postos em cena, serão tanto mais amargos e dolorosos quanto menos preparados estiverem os espíritos para renunciar e amar realmente. 
Convento das Carmelitas Descalças de Espanha, em Paris, onde
a protagonista do romance Renúncia, Alcíone,
permaneceu durante um ano, no século XVII.
A Igreja foi destruída pela Revolução Francesa. 
O espetáculo, neste aspecto, patenteia claramente as diferenças sutis entre os dois protagonistas e nos oferece elementos para buscarmos compreender a riqueza espiritual do contexto todo do trabalho em torno do romance, que é uma narrativa bibliográfica. Os personagens existiram, trata-se de uma história de vida. Seja a obra literária, seja o espetáculo posto em cena, o pontual esclarecimento sobre o que determinava o padrão de conduta de Alcíone e a revelação de onde e como ela buscava lucidez e forças para discernir e se posicionar em todas as circunstâncias da sua vida, é algo precioso para nós. Os anseios de ambos os protagonistas, Alcíone e Padre Carlos, eram idênticos, estavam enamorados, mas, a forma como faziam a leitura do momento que viviam e definiam suas opções é que gerava o diferencial de ambos. Entretanto, embora vivendo no século XVII, evidencia-se para nós, o fluxo das emoções e dos sentimentos comuns a todos os jovens apaixonados de todos os tempos, aquilo que, como força imanente do Universo, os atraia, aproximava e unia, apesar de todos os obstáculos, por todo o sempre... O amor de Deus, o amor eterno do Pai, que visita os corações dos seres humanos para proporcionar-lhes a benção do convívio e da aprendizagem...
Nesse aspecto, consideramos que a atualização do romance entre Alcíone e Carlos mediante uma trilha musical apoiada em Tom Jobim e Vinícius de Moraes se aplicou muito bem ao contexto da história e do espetáculo. De certa forma, foram eles, Tom com sua música e Vinícius com sua poesia, os que mais contribuíram para a formação da identidade amorosa do povo brasileiro. O amor foi o tema principal da obra de ambos e das canções que compuseram. As mais belas desse repertório, que constitui um precioso conjunto de canções integradas ao patrimônio imaterial do Brasil, como Eu não existo sem você e Se todos fossem iguais a você, foram selecionadas para compor a trilha musical de Um Amor de Renúncia. De certa forma, essas músicas estão na memória musical afetiva da maioria dos espectadores, ouvi-las na voz desses protagonistas tão distanciados de nosso presente, ganha sentido profundo porque são canções cuja temática, atemporalidade e universalidade justificam, sim, a sua inclusão no conjunto de músicas do espetáculo.
A composição do personagem Padre Damiano, por outro lado, traz para o contexto do trabalho, o aporte denso de um ator tarimbado, com recursos próprios construídos ao longo de uma carreira bem articulada, tanto pelo aprimoramento técnico quanto pela experiência profissional. Sua contribuição dá consistência às cenas das quais participa e sustenta o espetáculo de forma magistral. Valdir Ramos conseguiu carrear para as cenas em que atua, a amorosidade intensa de um pai sábio e carinhoso, que é, ademais, o próprio autor espiritual da obra. Emmanuel era o Padre Damiano! Nesse aspecto, é importante observar que o espírito Emmanuel foi pai de Carlos e também de Alcíone em encarnações distintas, essa ligação é patente, e mediante a performance do ator, tal aspecto é ressaltado de forma bastante comovente. Padre Damiano medeia o conflito dos filhos espirituais e Emmanuel narra a história, um recurso muito bem aplicado pelo dramaturgo Alberto Centurião.
A cena final do espetáculo, portanto, tem forte impacto sobre a consciência de todos os presentes. Esse momento dramático é marcado pelo gesto de um pai que lança sobre o filho a capa protetora do seu amor, compreendendo e perdoando esse filho, apesar de tudo. E afirmando, ademais, o direito que esse filho, equivocado e ingrato, tem de ser compreendido e de ser perdoado, de receber, enfim, o amparo de que necessita.  O público também entende o significado disso: no momento oportuno, se converterá esse gesto de proteção e misericórdia, certamente, em uma nova chance de reencarnação para que o Padre Carlos possa reparar os erros do passado e aprimorar o próprio espírito em sua contínua senda evolutiva. É essa a derradeira impressão que o espetáculo passa, grandiosa e bela em sua expressão de generosidade. O momento do desfecho da encenação traduz, sobretudo, para todos nós, a sublime esperança que a consciência da vida eterna proporciona e a consoladora certeza de que poderemos, nós também, resgatar os nossos débitos e corrigir os nossos defeitos mediante o renascimento neste plano físico, em novas encarnações.
O espetáculo, inevitavelmente, nos remete, portanto, a uma reflexão sobre a nossa própria existência também. Todos que estão assistindo Um Amor de Renúncia, de alguma forma, se vêm instados a rememorar o próprio passado e a rever a sua própria vida, sob a ótica filosófica do autor do romance Renúncia, na impecável perspectiva evangélica e espírita de Emmanuel...
As sugestões oferecidas pelo cenário do espetáculo nos remetem, por sua vez, às paisagens, ao rosto arquitetônico de Ávila e de Paris, que contemplamos pensativos... Eles nos induzem à assimilação das dores dos personagens em cena. Mas, ao mesmo tempo, haurimos o conforto que a fé, o amor e a renúncia de Alcíone nos proporcionam durante todo o tempo, tanto na obra original de Emmanuel quanto no próprio espetáculo de Lucienne Cunha.
Convento das Carmelitas Descalças em Medina del Campo, onde Alcíone foi
vice-priora, passando aí o período final de sua vida, antes de ser levada para
o Tribunal da Santa Inquisição em Madrid, onde veio a falecer.
Sucessivamente, Alcíone perde o seu status socioeconômico, perde, subitamente, o pai e a mãe, e em seguida, perde o homem que ela amava e, por fim, perde, de certa maneira, a própria identidade feminina, abdicando por completo da possibilidade de casar-se, de constituir família e de ter filhos... A sua renúncia é plena, sobretudo, também, porque ela reencarnou sabendo o que poderia acontecer, e o fez abrindo mão de suas possibilidades de manifestação artística ou mesmo em outras áreas como a de Saúde porque fica patente também a sua competência como enfermeira. Ela cuida habilidosamente e de forma muito eficaz, de sua mãe e de Suzana, que perde o controle das suas faculdades mentais, assim como do próprio Padre Damiano. De certa maneira, estende esse cuidado à toda a família, convertendo-se em suporte para a meia-irmã Beatriz e para o pequeno Robbie... Alcíone foi realmente o que hoje em dia se denomina uma “cuidadora”.
O espetáculo funciona, outrossim, como um excelente estímulo à leitura da obra Renúncia, de Emmanuel. São vários personagens que não aparecem no espetáculo, compondo uma intrincada trama que aborda, afinal, a questão da justiça divina e o regenerador processo reencarnatório, de forma precisa e esclarecedora. Oxalá muitos a leiam e reflitam bastante sobre o que propõe esse romance, para dirimir dúvidas quanto ao que é, em verdade, o sentimento de amor.                
Definitivamente, não é a satisfação imediata dos desejos pessoais de cada um, nem a alegria de conviver exclusivamente com aqueles que nos compreendem... É um exercício permanente de renúncia, posto que não é possível amar verdadeiramente sem fazer sacrifícios, sem tolerar, sem ajustar-se ao contexto do outro, abrindo mão das próprias prerrogativas. O amor incondicional que Alcíone manifesta está em absoluta oposição ao que o jovem Padre Carlos alcança e revela. Seu egoísmo, seu individualismo e a consequente postura radical que advém dessas características de sua persona, o levam a tornar-se, de forma bastante dolorosa, o próprio algoz de sua amada. Tal realidade, marcada com extrema crueldade, nos sensibiliza profundamente, tanto na condição de leitor da obra literária quanto na de público fruidor do espetáculo.
Esse é outro aspecto singular da obra de Emmanuel, ela resgata, de certa maneira, o sentido do culto, aqui entendido por nós como observação, meditação e prática do exemplo dado por Jesus Cristo crucificado. Fica patente a ideia de que há um sentido profundo neste mister, ao qual se dedicou Alcíone durante toda a sua vida e do qual extraiu as forças de que necessitou para converter-se em Irmã Maria de Jesus Crucificado, ou seja, um ser capaz de renunciar aos seus próprios anseios em favor de outrem, uma seguidora incondicional do Mestre, que analisa atentamente todas as circunstâncias de sua vida e cumpre a vontade do Pai, sem queixas, sobretudo, perdoando a todos. O exemplo dado por Jesus Cristo, mediante o seu sacrifício é de humildade, de renúncia e de perdão, virtudes que foram vivenciadas por Alcíone em sua existência tão curta e tão repleta de espinhos, singularizada por sua tentativa de fazer essa imitação de Cristo, buscando, também, de alguma forma, manifestar o seu amor incondicional.
Ocorre-nos, então, a ideia de que o século XVII não está tão distante assim de nós!... Na sequencia de vidas que compõe o ciclo de aprendizagens de espíritos afins, as oportunidades sempre se renovam e os bons propósitos, abençoados pela Misericórdia Divina, encontram terreno para fazer florescer os sentimentos e as atitudes que faltaram no passado...
E creio, por essa razão e, a despeito de tudo, que Alcíone, de alguma forma, expressaria sua gratidão pela manifestação da verdade íntima de cada um dos seus opositores com os quais cruzou em sua trajetória luminosa pela Terra... Explico: do ponto de vista dramatúrgico, em uma tragédia ou epopeia, tanto mais envolvente e impressionante se torna a trama e a resistência do protagonista quanto melhores forem seus oponentes. Ao explicitarem sua verdade, a natureza que os caracteriza e move, oferecerão  ao protagonista, a oportunidade de afirmar a dele também. De certa maneira, os hipócritas, os falsos e os dissimulados que não se revelam, também não agem, e, por conseguinte, não demandam uma reação positiva, densa, porque permanecem na sombra... O público de um espetáculo teatral ou o contingente de leitores de uma obra literária trágica, pois, se encanta com o protagonista, sabe que ele perde e morre, mas, o que o torna admirável não é o fato de perder ou ganhar, mas, a dignidade com que luta até o fim, por aquilo que defende...
É um alento para nós, nesse sentido, a identificação clara de um processo de aprendizagem coletiva no contexto desse conflito todo que o romance e o espetáculo expõem, sobretudo porque não é inviável a ideia de que um dia, em algum lugar do Universo, todos esses personagens, que são espíritos eternos, se reunirão para vivenciar a paz e compartilhar as alegrias do amor incondicional.  Fica em nosso espírito essa certeza que nos conforta sobremaneira, mediante a leitura da obra de Emmanuel, seja num suporte, em brochura, seja na sua versão sintetizada, em um palco... Somos todos humanos, espíritos em evolução na  esteira infinita da vida, filhos do mesmo Pai!... Teremos, portanto, a nosso turno, também, a nossa chance de aprender... 
Aprender a viver, um igualmente belo, comovente e transformador, Amor de Renúncia!...

 Rita De Blasiis
Uberaba, 05 de agosto, 2015.



Referências Bibliográficas
EMMANUEL. (Espírito). Renúncia. [Psicografado por] Francisco Cândido Xavier. Brasília: FEB, 2005.
PRONKO, L. C. Teatro: Leste & Oeste. São Paulo, Perspectiva, 1986.