Palacete do Século XVII situado na Île de la Cité, no coração de Paris, similar à descrição de Emmanuel, autor espiritual da obra Renúncia, psicografada por Francisco Cândido Xavier. |
A oportunidade de assistir o
espetáculo que resultou do recorte feito pelo dramaturgo Alberto Centurião
sobre a obra Renúncia do Espírito Emmanuel, psicografia de Francisco Cândido
Xavier, foi preciosa e gratificante. A síntese do romance redundou em um texto
para cena com apenas três personagens, o que nos pareceu, à primeira vista, um
desafio e tanto para a diretora Lucienne Cunha, algo que se evidenciou,
entretanto, ao vermos o trabalho finalizado, uma questão muito bem resolvida. A concepção cênica do espetáculo nos
ofereceu, sem dúvida, momentos de enlevo e de reflexão muito singulares.
Nas
entrelinhas do texto, mediante o qual Emmanuel inicia a sua obra, fazendo a
apresentação da protagonista, há pistas sobre os pendores para as artes em
geral, do Espírito Alcíone. A percepção disso, presumimos, permitiu um insight muito interessante em relação à
concepção cênica do espetáculo. Nessa esteira, a tradução da singularidade
artística da protagonista para a linguagem teatral foi apresentada nos
primeiros momentos do espetáculo de forma bastante especial. Alcíone dançando, compondo a cena mediante o
desenvolvimento de movimentos corporais leves e sutis, transmitiu, na exata
medida, a ideia de um ser angelical, guiado por sentimentos nobres. A abertura
do espetáculo tem uma composição densa e poética, e lida com a
realidade do plano espiritual de maneira original, valendo-se de artifícios
muito sugestivos.
Nesse
aspecto, ressaltamos o que diz Leonard Pronko, em sua obra Teatro: Leste & Oeste.
Esse autor e pesquisador faz uma observação importante sobre os recursos
cênicos empregados pelo teatro na China; esclarece ele que o fazer teatral nesse
país considera importante elaborar, mediante a produção de um espetáculo, um “apelo
à faculdade criativa do espectador”. Ou
seja, os elementos fornecidos a esse, devem constituir-se em referência para que
o público complemente, deduza, imagine, a partir do que está posto em cena, articulando
em sua própria mente o contexto imponderável do espetáculo...
Um Amor de Renúncia revelou a adoção de
uma linha de ação dramática apoiada na narrativa oral cênica. O trabalho foi
habilmente conduzido pela direção com o adequado concurso dos atores Flavio
Wongalak, Thalita Drodowsk e Valdir Ramos, no sentido de proporcionar aos
espectadores, de forma bastante pontual, cada qual com sua introspecção, a
oportunidade de construir e de fruir, junto com o elenco, o recorte poético da trágica
relação afetiva do casal.
A
trilha musical do espetáculo, então, considerados esses aspectos do trabalho,
surgiu como um contraponto sutil. A história se passa no século XVII, mas, os
grandes amores eternos, as histórias trágicas protagonizadas por apaixonados
que professam convicções inalienáveis e revelam personalidades marcantes, não
têm tempo fixo, data prévia, época adequada para acontecerem. O tempo presente
é o seu momento. Os conflitos, os processos de aprendizagem mediante a difícil
convivência, em meio a todas as nuances que compõem uma existência de
sacrifícios e, sobretudo, as relações amorosas densas, não pertencem a nenhum
período exclusivo da história da humanidade. Basta um casal verdadeiramente apaixonado
impossibilitado de realizar o seu sonho de amor para se desenvolver uma trama
que eletrizará qualquer plateia. Os insucessos, os sofrimentos e agruras da
vida postos em cena, serão tanto mais amargos e dolorosos quanto menos
preparados estiverem os espíritos para renunciar e amar realmente.
Convento das Carmelitas Descalças de Espanha, em Paris, onde a protagonista do romance Renúncia, Alcíone, permaneceu durante um ano, no século XVII. A Igreja foi destruída pela Revolução Francesa. |
O
espetáculo, neste aspecto, patenteia claramente as diferenças sutis entre os
dois protagonistas e nos oferece elementos para buscarmos compreender a riqueza
espiritual do contexto todo do trabalho em torno do romance, que é uma
narrativa bibliográfica. Os personagens existiram, trata-se de uma história de
vida. Seja a obra literária, seja o espetáculo posto em cena, o pontual
esclarecimento sobre o que determinava o padrão de conduta de Alcíone e a
revelação de onde e como ela buscava lucidez e forças para discernir e se posicionar
em todas as circunstâncias da sua vida, é algo precioso para nós. Os anseios de
ambos os protagonistas, Alcíone e Padre Carlos, eram idênticos, estavam
enamorados, mas, a forma como faziam a leitura do momento que viviam e definiam
suas opções é que gerava o diferencial de ambos. Entretanto, embora vivendo no século XVII,
evidencia-se para nós, o fluxo das emoções e dos sentimentos comuns a todos os
jovens apaixonados de todos os tempos, aquilo que, como força imanente do
Universo, os atraia, aproximava e unia,
apesar de todos os obstáculos, por todo o sempre... O amor de Deus, o amor
eterno do Pai, que visita os corações dos seres humanos para proporcionar-lhes
a benção do convívio e da aprendizagem...
Nesse
aspecto, consideramos que a atualização do romance entre Alcíone e Carlos
mediante uma trilha musical apoiada em Tom Jobim e Vinícius de Moraes se
aplicou muito bem ao contexto da história e do espetáculo. De certa forma,
foram eles, Tom com sua música e Vinícius com sua poesia, os que mais
contribuíram para a formação da identidade amorosa do povo brasileiro. O amor
foi o tema principal da obra de ambos e das canções que compuseram. As mais
belas desse repertório, que constitui um precioso conjunto de canções
integradas ao patrimônio imaterial do Brasil, como Eu não existo sem você e Se
todos fossem iguais a você, foram selecionadas para compor a trilha musical
de Um Amor de Renúncia. De certa
forma, essas músicas estão na memória musical afetiva da maioria dos espectadores,
ouvi-las na voz desses protagonistas tão distanciados de nosso presente, ganha
sentido profundo porque são canções cuja temática, atemporalidade e
universalidade justificam, sim, a sua inclusão no conjunto de músicas do
espetáculo.
A composição do personagem Padre Damiano, por outro lado, traz para o contexto do trabalho, o aporte denso de um ator tarimbado, com recursos próprios construídos ao longo de uma carreira bem articulada, tanto pelo aprimoramento técnico quanto pela experiência profissional. Sua contribuição dá consistência às cenas das quais participa e sustenta o espetáculo de forma magistral. Valdir Ramos conseguiu carrear para as cenas em que atua, a amorosidade intensa de um pai sábio e carinhoso, que é, ademais, o próprio autor espiritual da obra. Emmanuel era o Padre Damiano! Nesse aspecto, é importante observar que o espírito Emmanuel foi pai de Carlos e também de Alcíone em encarnações distintas, essa ligação é patente, e mediante a performance do ator, tal aspecto é ressaltado de forma bastante comovente. Padre Damiano medeia o conflito dos filhos espirituais e Emmanuel narra a história, um recurso muito bem aplicado pelo dramaturgo Alberto Centurião.
A composição do personagem Padre Damiano, por outro lado, traz para o contexto do trabalho, o aporte denso de um ator tarimbado, com recursos próprios construídos ao longo de uma carreira bem articulada, tanto pelo aprimoramento técnico quanto pela experiência profissional. Sua contribuição dá consistência às cenas das quais participa e sustenta o espetáculo de forma magistral. Valdir Ramos conseguiu carrear para as cenas em que atua, a amorosidade intensa de um pai sábio e carinhoso, que é, ademais, o próprio autor espiritual da obra. Emmanuel era o Padre Damiano! Nesse aspecto, é importante observar que o espírito Emmanuel foi pai de Carlos e também de Alcíone em encarnações distintas, essa ligação é patente, e mediante a performance do ator, tal aspecto é ressaltado de forma bastante comovente. Padre Damiano medeia o conflito dos filhos espirituais e Emmanuel narra a história, um recurso muito bem aplicado pelo dramaturgo Alberto Centurião.
A
cena final do espetáculo, portanto, tem forte impacto sobre a consciência de
todos os presentes. Esse momento dramático é marcado pelo gesto de um pai que
lança sobre o filho a capa protetora do seu amor, compreendendo e perdoando
esse filho, apesar de tudo. E afirmando, ademais, o direito que esse filho,
equivocado e ingrato, tem de ser compreendido e de ser perdoado, de receber,
enfim, o amparo de que necessita. O
público também entende o significado disso: no momento oportuno, se converterá
esse gesto de proteção e misericórdia, certamente, em uma nova chance de
reencarnação para que o Padre Carlos possa reparar os erros do passado e
aprimorar o próprio espírito em sua contínua senda evolutiva. É essa a
derradeira impressão que o espetáculo passa, grandiosa e bela em sua expressão
de generosidade. O momento do desfecho da encenação traduz, sobretudo, para
todos nós, a sublime esperança que a consciência da vida eterna proporciona e a
consoladora certeza de que poderemos, nós também, resgatar os nossos débitos e
corrigir os nossos defeitos mediante o renascimento neste plano físico, em
novas encarnações.
O
espetáculo, inevitavelmente, nos remete, portanto, a uma reflexão sobre a nossa
própria existência também. Todos que estão assistindo Um Amor de Renúncia, de alguma forma, se vêm instados a rememorar o
próprio passado e a rever a sua própria vida, sob a ótica filosófica do autor
do romance Renúncia, na impecável perspectiva evangélica e espírita de
Emmanuel...
As
sugestões oferecidas pelo cenário do espetáculo nos remetem, por sua vez, às
paisagens, ao rosto arquitetônico de Ávila e de Paris, que contemplamos
pensativos... Eles nos induzem à assimilação das dores dos personagens em cena.
Mas, ao mesmo tempo, haurimos o conforto que a fé, o amor e a renúncia de
Alcíone nos proporcionam durante todo o tempo, tanto na obra original de
Emmanuel quanto no próprio espetáculo de Lucienne Cunha.
Sucessivamente,
Alcíone perde o seu status socioeconômico, perde, subitamente, o pai e a mãe, e
em seguida, perde o homem que ela amava e, por fim, perde, de certa maneira, a
própria identidade feminina, abdicando por completo da possibilidade de
casar-se, de constituir família e de ter filhos... A sua renúncia é plena,
sobretudo, também, porque ela reencarnou sabendo o que poderia acontecer, e o
fez abrindo mão de suas possibilidades de manifestação artística ou mesmo em
outras áreas como a de Saúde porque fica patente também a sua competência como
enfermeira. Ela cuida habilidosamente e de forma muito eficaz, de sua mãe e de Suzana,
que perde o controle das suas faculdades mentais, assim como do próprio Padre
Damiano. De certa maneira, estende esse cuidado à toda a família,
convertendo-se em suporte para a meia-irmã Beatriz e para o pequeno Robbie...
Alcíone foi realmente o que hoje em dia se denomina uma “cuidadora”.
O
espetáculo funciona, outrossim, como um excelente estímulo à leitura da obra
Renúncia, de Emmanuel. São vários personagens que não aparecem no espetáculo,
compondo uma intrincada trama que aborda, afinal, a questão da justiça divina e o
regenerador processo reencarnatório, de forma precisa e esclarecedora. Oxalá
muitos a leiam e reflitam bastante sobre o que propõe esse romance, para
dirimir dúvidas quanto ao que é, em verdade, o sentimento de amor.
Definitivamente, não é a satisfação imediata dos desejos pessoais de cada um, nem a alegria de
conviver exclusivamente com aqueles que nos compreendem... É um exercício
permanente de renúncia, posto que não é possível amar verdadeiramente sem fazer
sacrifícios, sem tolerar, sem ajustar-se ao contexto do outro, abrindo mão das
próprias prerrogativas. O amor incondicional que Alcíone manifesta está em absoluta
oposição ao que o jovem Padre Carlos alcança e revela. Seu egoísmo, seu individualismo
e a consequente postura radical que advém dessas características de sua persona, o levam a tornar-se, de forma
bastante dolorosa, o próprio algoz de sua amada. Tal realidade, marcada com
extrema crueldade, nos sensibiliza profundamente, tanto na condição de leitor
da obra literária quanto na de público fruidor do espetáculo.
Esse
é outro aspecto singular da obra de Emmanuel, ela resgata, de certa maneira, o
sentido do culto, aqui entendido por nós como observação, meditação e prática
do exemplo dado por Jesus Cristo crucificado. Fica patente a ideia de que há um
sentido profundo neste mister, ao qual se dedicou Alcíone durante toda a sua
vida e do qual extraiu as forças de que necessitou para converter-se em Irmã Maria
de Jesus Crucificado, ou seja, um ser capaz de renunciar aos seus próprios anseios
em favor de outrem, uma seguidora incondicional do Mestre, que analisa atentamente
todas as circunstâncias de sua vida e cumpre a vontade do Pai, sem queixas, sobretudo,
perdoando a todos. O exemplo dado por Jesus Cristo, mediante o seu sacrifício é
de humildade, de renúncia e de perdão, virtudes que foram vivenciadas por
Alcíone em sua existência tão curta e tão repleta de espinhos, singularizada
por sua tentativa de fazer essa imitação de Cristo, buscando, também, de alguma
forma, manifestar o seu amor incondicional.
Ocorre-nos,
então, a ideia de que o século XVII não está tão distante assim de nós!... Na
sequencia de vidas que compõe o ciclo de aprendizagens de espíritos afins, as
oportunidades sempre se renovam e os bons propósitos, abençoados pela Misericórdia
Divina, encontram terreno para fazer florescer os sentimentos e as atitudes que
faltaram no passado...
E
creio, por essa razão e, a despeito de tudo, que Alcíone, de alguma forma,
expressaria sua gratidão pela manifestação da verdade íntima de cada um dos
seus opositores com os quais cruzou em sua trajetória luminosa pela Terra...
Explico: do ponto de vista dramatúrgico, em uma tragédia ou epopeia, tanto mais
envolvente e impressionante se torna a trama e a resistência do protagonista
quanto melhores forem seus oponentes. Ao explicitarem sua verdade, a natureza
que os caracteriza e move, oferecerão ao
protagonista, a oportunidade de afirmar a dele também. De certa maneira, os
hipócritas, os falsos e os dissimulados que não se revelam, também não agem, e,
por conseguinte, não demandam uma reação positiva, densa, porque permanecem na
sombra... O público de um espetáculo teatral ou o contingente de leitores de
uma obra literária trágica, pois, se encanta com o protagonista, sabe que ele
perde e morre, mas, o que o torna admirável não é o fato de perder ou ganhar,
mas, a dignidade com que luta até o fim, por aquilo que defende...
É
um alento para nós, nesse sentido, a identificação clara de um processo de
aprendizagem coletiva no contexto desse conflito todo que o romance e o
espetáculo expõem, sobretudo porque não é inviável a ideia de que um dia, em
algum lugar do Universo, todos esses personagens, que são espíritos eternos, se
reunirão para vivenciar a paz e compartilhar as alegrias do amor incondicional.
Fica em nosso espírito essa certeza que
nos conforta sobremaneira, mediante a leitura da obra de Emmanuel, seja num
suporte, em brochura, seja na sua versão sintetizada, em um palco... Somos
todos humanos, espíritos em evolução na
esteira infinita da vida, filhos do mesmo Pai!... Teremos, portanto, a
nosso turno, também, a nossa chance de aprender...
Aprender a viver, um igualmente
belo, comovente e transformador, Amor de
Renúncia!...
Rita De Blasiis
Uberaba, 05 de
agosto, 2015.
Referências Bibliográficas
EMMANUEL.
(Espírito). Renúncia. [Psicografado
por] Francisco Cândido Xavier. Brasília: FEB, 2005.
PRONKO,
L. C. Teatro: Leste & Oeste. São
Paulo, Perspectiva, 1986.
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